Já estamos acostumados com campanhas de educação ambiental, algumas gerações mais recentes tiveram aulas na escola sobre o tema, as informações são bem simples e já estão marteladas na cabeça de muita gente: Reduzir, Reutilizar e Reciclar. Apesar disso por algum motivo a maioria ainda não consegue seguir a simples recomendação de separar os diferentes resíduos que descartamos diariamente: os orgânicos (passíveis de serem reaproveitados como adubo), os sólidos (passíveis de reciclagem) e finalmente os rejeitos (o que não é reaproveitável) que vão necessariamente direto para os aterros sanitários.
A Região Metropolitana de São Paulo produz diariamente 19 milhões de metros cúbicos de resíduos por dia, assim fica um número muito abstrato, melhor algumas comparações com referenciais espaciais comuns:
Quando optamos por não separar o que descartamos transformamos tudo em rejeito, assim com uma pequena displicência sentenciamos tudo a passar centenas de anos juntos debaixo da terra produzindo chorume e emitindo Gases do Efeito Estufa, nosso descuido (na cidade de São Paulo) apenas entre os anos de 1974 a 2007 consumiu 2,3 milhões de metros quadrados de território para dispor as quase 42 milhões de toneladas de rejeitos.
Continuamos normalmente como se nada estivesse acontecendo, afinal de contas colocamos nosso saco de lixo na calçada e temos a sensação de não ter responsabilidade alguma sobre as embalagens que compramos. O caminhão de lixo passa de noite, de madrugada, os aterros estão nas bordas das cidades, ou no caso de São Paulo um fora da cidade em Caieiras (cidade da região metropolitana) o maior da América Latina, ou seja, o sistema todo de coleta e destinação final está escondido, invisibilizado por assim dizer. Poucas pessoas parecem ter interesse em ficar prestando atenção nele, afinal fede muito.
Infelizmente temos cada vez mais pessoas realmente revirando latas de lixo para comer, a população em situação de rua em São Paulo aumentou 60% entre 2015 e 2019, de 15.900 para 24.344 de acordo com o Censo de População em Situação de Rua de 2019, sabemos que esses números continuam aumentando conjuntamente com a taxa de desemprego.
Existe uma interseccionalidade entre catadores e população em situação de rua, uma vez que buscando os restos de alimentos também encontram os resíduos sólidos misturados. Esses catadores autônomos conseguem catar até uma certa quantidade materiais e estão reféns de vendê-los aos sucateiros, que nada mais são do que intermediários que compram o material a um preço muito baixo e tem capacidade de estocagem muito maior, o que os permite acumular grandes quantidades para então revendê-los com uma margem de lucro muito maior para a indústria recicladora.
A invisibilização do sistema de coleta de resíduos contribui fortemente para a marginalização de seus trabalhadores, no começo dos anos 2000 finalmente a população em situação de rua e os catadores de materiais recicláveis se articularam e criaram seus movimentos de classe e começaram a reivindicar coletivamente a criação de políticas públicas específicas, expressas na Carta de Brasília entregue em 2001 ao governo federal durante o primeiro Congresso Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis.
Somente em 2010 depois de ter ficado mais de 20 anos em tramitação foi aprovada a lei federal 12.305 que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) que estabeleceu as normas que regem a cadeia produtiva da reciclagem, estabeleceu metas para a desativação dos lixões e inseriu os catadores como agentes fundamentais no processo. Alterando assim o sistema que havia se instituído ao longo de toda nossa história de país, no qual empresas originalmente da construção civil se apropriaram da prestação de serviços de gestão dos resíduos, por meio de concessões via prefeituras.
De acordo com os dados da Pesquisa Nacional do Saneamento Básico (PNSB), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existe uma relação direta entre o número de habitantes de um município e a porcentagem da participação da iniciativa privada na execução do serviço. Quanto maior a densidade populacional da cidade em questão, maior o nível de terceirização do serviço de limpeza urbana. Nos municípios com até 50 mil habitantes, 36,6% das entidades prestadoras do serviço são privadas, enquanto 63,4% são públicas. Nos municípios acima de 500 mil habitantes, esta relação se inverte: 26,6% do serviço são prestados por ente público, enquanto 73,4% estão a cargo da iniciativa privada. Nos municípios acima de 1 milhão de habitantes, a porcentagem de terceirização do serviço chega a 90% (IBGE, 2010).
Dessa forma, constata-se que a iniciativa privada opera preferencialmente nas grandes e médias cidades, que possuem maior arrecadação de impostos e, portanto, melhores condições de financiar esse serviço. Conforme a PNSB, o orçamento do serviço de coleta e gestão dos resíduos sólidos urbanos (RSUs) pode chegar a 20% dos gastos do município (IBGE, 2010).
No entanto, não há dados disponíveis sobre os orçamentos detalhados, já que no Brasil, não existe uma tabela nacional de referência para a prestação desse serviço. Essas empresas se especializaram, e a cada novo contrato ganho adquirem mais importância e capital, assim aumentando as chances de ganhar outras concorrências em outras cidades.
Apesar da promulgação da PNRS e dos subsídios oferecidos pelo BNDES através do Programa CATAFORTE que permitiu a criação de muitas novas cooperativas, apenas 10% dos catadores de materiais recicláveis se encontram organizados em cooperativas, a relação de forças ainda se encontra muito desigual, de um lado consórcios que faturam bilhões por ano (41,5 só em 2014 no município de São Paulo) e que conseguem ter uma grande permeabilidade no estado por financiamento público de campanhas há muitos anos e que portanto tem um lobby considerável e do outro a associação dos catadores organizados.
Somando todas as nossas desatenções quanto ao nosso descarte pessoal, desperdiçamos 8 bilhões de reais no país por ano ao misturar tudo no mesmo saco, na situação caótica que nos encontramos hoje não podemos mais nos dar ao luxo de consumir embalagens que não podem ser reaproveitadas, e devemos exigir a criação de novas linhas de financiamento para a criação de cooperativas. A PNRS também instituiu conceitos importantes como o da responsabilidade compartilhada que diz que todos os agentes envolvidos na cadeia da produção até o descarte dos produtos têm responsabilidade sobre ele, ou seja, apesar de nos ausentarmos, e tirarmos o corpo fora, como se não tivéssemos nada haver, legalmente respondemos ou pelo menos deveríamos, pelo chorume nosso de cada dia.
Referências Bibliográficas
BALBI, Antonio. Cidade Resíduo. Trabalho de Conclusão de Curso. Escola da Cidade, São Paulo, 2021.
Brasil. (2010, 2 de agosto). Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010. Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União.
CALDERONI, S. Os bilhõe$ perdido$ no lixo. São Paulo: Humanitas Publicações FFCLH/USP, 1999.
GODOY, Samuel Ralize de. Muito além da lata de lixo: a construção da política pública e a organização do mercado de limpeza urbana no município de São Paulo. Dossiê Novos Estudos. CEBRAP. Capitais do Urbano. São Paulo. v.35. p 55-76. 2016
GÓES, Fernanda; PEREIRA, Bruna, Daniela. Introdução In:GÓES, Fernanda; PEREIRA, Bruna, Catadores de materiais recicláveis : um encontro nacional, Rio de Janeiro, Ipea, 2016
Este ensaio foi produzido como resultado da matéria de Estúdio Transversal no segundo semestre de 2020, na Escola da Cidade, e complementado com o TCC apresentado em agosto de 2021, para ler o trabalho completo acesse aqui. Como complemento de divulgação da discussão foi apresentado junto com o TCC um mini documentário, para ver acesse aqui.